27.06.2025 às 07:50h - Santa Catarina

Lei sancionada em SC traz mudança para pessoas com dislexia nos concursos públicos

Ricardo Orso

Por: Ricardo Orso São Miguel do Oeste - SC

 Lei sancionada em SC traz mudança para pessoas com dislexia nos concursos públicos
Foto: Divulgação, Ascom

Desde a infância, Nathália de Menezes teve que aprender a conviver com a dislexia, transtorno do neurodesenvolvimento que afeta, principalmente, a leitura e a escrita. Ela recebeu o diagnóstico aos oito anos, quando os professores e a mãe perceberam que por trás da dificuldade de aprendizado da menina estava uma falta de interpretação, além da troca de letras como “p” e “b”. Atualmente, aos 26 anos, a jovem é formada em Direito e se define como “concurseira”, ou seja, alguém que está se preparando para concursos públicos. Por meio dos exames, Nathália tem o sonho de, um dia, se tornar policial militar.

Recentemente, uma lei sancionada em Santa Catarina mudou a relação que a moradora de Palhoça, na Grande Florianópolis, tem com as provas. Se trata da Lei nº 19.321, do deputado Sergio Motta (PRB), sancionada no dia 12 de junho deste ano.

Dislexia: conheça os sintomas, as causas e os tratamentos

A lei assegura o direito ao atendimento especializado às pessoas com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), dislexia e síndrome de Down nos concursos públicos e vestibulares realizados no âmbito da administração pública estadual.

A norma estabelece que as comissões organizadoras de concursos públicos e vestibulares devem, a partir de agora, prever e divulgar as condições para o certame em atenção às diretrizes fixadas na lei, como tempo extra, profissionais de apoio como ledores e transcritores, e ambiente adequado para realização das provas.

— A lei é um passo firme na direção de uma educação mais inclusiva. Ela foi construída com base em relatos de famílias, estudantes e profissionais da educação. Agora, com a aprovação, temos uma ferramenta concreta para promover mais igualdade de oportunidades em momentos decisivos como concursos e vestibulares, especialmente ao sensibilizar as instituições e criar uma cultura de respeito às necessidades específicas de cada cidadão catarinense — afirmou o deputado ao NSC Total.

Por que a medida é importante?

Os desafios em relação à leitura e à escrita em pessoas disléxicas costumam aparecer na fase da alfabetização, de acordo com o neurologista José Araújo de Andrade Neto.

Provas, como concursos públicos ou vestibulares, exigem uma forte habilidade de interpretação de texto por parte do candidato, além da necessidade de uma leitura rápida para otimizar o tempo — geralmente, esses tipos de exame têm duração média de cinco horas. Para as pessoas com dislexia, isso é um desafio.

— Pessoas com dislexia costumam ter dificuldades de interpretar textos e fazer leituras rápidas, mesmo que já tenham sido alfabetizadas. Isso acontece porque, para elas, o processo de leitura não é automático. Enquanto a maioria das pessoas entende a leitura como algo natural, a pessoa com dislexia precisa fazer muito mais esforço para decodificar as palavras. O cérebro encontra dificuldade em processar esses símbolos e transformá-los em informação compreensível — esclarece o médico.

É o que Nathália enfrenta nas provas que realiza durante esta fase da vida, em que está em busca do sonho de se tornar policial.

— Eu escrevo, mas eu tenho que ler umas três vezes. E às vezes eu não consigo ver o erro que está na escrita. A prova de concurso é tempo, e eu não faço a questão tão rápido porque eu tenho que ler várias vezes para entender o que ela está pedindo — relata a jovem.

É por isso que, mesmo que o candidato com dislexia conheça bem o conteúdo da prova, ele irá ter dificuldades de entender o que está sendo pedido, simplesmente por não conseguir interpretar os enunciados com clareza, de acordo com o neurologista José Araújo de Andrade Neto.

— Medidas como tempo extra, prova com fonte ampliada, leitura em voz alta, sala separada e

menos estímulos visuais ajudam a reduzir o impacto da dislexia no desempenho da prova — declara o médico.

Nathália concorda. Para ela, escrever uma redação com alguém do lado, para quem ela possa ler em volta, é importantíssimo:

— Eu já escrevi perguntando, e é muito bom, para mim. Várias vezes, ao escrever uma palavra, como “perguntando”, eu já escrevi “perguntanto”, trocando o “d” pelo “t”. E eu não percebo, mesmo relendo, a não ser que alguém aponte para mim.

“Leis para disléxicos são fundamentais”, diz ABD

Procurada pela reportagem, a Associação Brasileira de Dislexia (ABD) celebrou o avanço para o estado catarinense. Em nota, a presidente voluntária da ABD, Maria Angela Nogueira Nico, disse que as leis voltadas para este público específico são fundamentais para criar um ambiente que respeite a diversidade e facilite o desenvolvimento integral das pessoas disléxicas brasileiras.

“As legislações oferecem apoio e proteção necessárias para garantir que os disléxicos tenham acesso igualitário a educação, saúde e inclusão social, além de incentivar campanhas de conscientização sobre a dislexia nas escolas e na sociedade”, reforçou a fonoaudióloga e psicopedagoga clínica.

Vida com dislexia é “aprender a conviver”

Viver com dislexia se trata de aprender a conviver. Isso foi algo que a primeira psicopedagoga que Nathália de Menezes teve, durante a infância, disse à ela. Hoje, ela diz que a constatação é verdadeira:

— Como a dislexia não é uma neurodivergência muito comentada, eu tive que aprender a conviver com ela.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que entre 5% e 10% da população mundial seja afetada pela dislexia. Nathália considera que teve sorte no aprendizado durante o ensino fundamental. Isso porque estudou em uma escola que aplicava o método Montessori, que, para ela, foi uma experiência positiva.

— Foi muito bom porque eu tinha um método diferente de prova para que eu conseguisse raciocinar e absorver o conteúdo da mesma forma. Eu tinha uma atenção mais redobrada dos professores também. Eu lembro que eles me falavam sempre para eu não “comer” letras, porque além de trocar o “d” pelo “t” ou o “b” pelo “p”, eu esquecia de completar algumas palavras — relembra.

Métodos como estes, ao invés de diferenciar, na verdade incluem, segundo o neurologista José Araújo:

— Dizer que todos devem ser avaliados da mesma forma é como julgar a habilidade de um peixe por sua capacidade de subir em uma árvore. Precisamos promover equidade, não apenas igualdade. Enquanto igualdade trata todos de forma igual, a equidade trata cada pessoa de acordo com suas necessidades — pontua o médico.

Mesmo quando a leitura já foi adquirida, estudar e compreender conteúdos de diferentes matérias continua sendo um desafio maior para os disléxicos, de acordo com o neurologista.

— Durante as provas, além de levar mais tempo, a pessoa pode ter dificuldade em expressar o que sabe da forma esperada. Por isso, avaliações comuns podem não ser a melhor estratégia — afirma.

Avanços acontecem em outros estados

O avanço para a garantia de equidade em concursos públicos e vestibulares não ocorre somente em Santa Catarina. Mato Grosso do Sul, por exemplo, instituiu, em 29 de maio de 2023, a Lei nº 6.058/2023, que garante tempo extra de uma hora, além de profissional ledor, transcritor e sala diferenciada, para candidatos com TDAH e dislexia em concursos e vestibulares.

Já o Piauí aprovou em 20 de outubro de 2021 a Lei nº 7.607/2021. Ela assegura uma hora e meia de tempo adicional, ledor, transcritor, sala especial e correção por banca preparada para estudantes com TDAH e/ou dislexia. A norma entrou em vigência após regulamentação prevista em janeiro de 2022.

Em 6 de novembro de 2023, o Amazonas sancionou a Lei nº 6.570/2023, alterando regras dos concursos estaduais para incluir atendimento especializado — ledor, transcritor e sala diferenciada — para pessoas com TDAH e dislexia.

Já em Minas Gerais, está tramitando o PL 250/2023, já com parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) de abril de 2023, prevendo tempo adicional de uma hora e meia aos candidatos neurodivergentes, além de ledor, transcritor, sala diferenciada e banca especializado na correção.

No Projeto de Lei (PL) do deputado catarinense Sérgio Motta, inicialmente, era prevista uma hora a mais de tempo de prova para pessoas com dislexia, TDAH ou Síndrome de Down. Na lei sancionada, no entanto, essa definição ficou a cargo da comissão organizadora de cada concurso ou vestibular, com base nas diretrizes da própria lei.

O profissional transcritor também não foi mencionado diretamente na versão sancionada, de acordo com o deputado, o que muda um pouco a operacionalização do atendimento especializado.

— No entanto, a lei garante a possibilidade de apoio técnico-profissional para orientações e procedimentos específicos, o que pode sim incluir transcrição, dependendo do caso e da comissão organizadora — afirma.

Leia a nota da ABD na íntegra

“Todos os tipos de leis brasileiras para indivíduos com dislexia têm uma importância bem significativa. As legislações oferecem apoio e proteção necessárias para garantir que os disléxicos tenham acesso igualitário a educação, saúde e inclusão social. A legislação brasileira promove a identificação precoce através de uma avaliação multidisciplinar dos indivíduos com dificuldades de aprendizagem, garantindo que desde as crianças disléxicas até ao que frequenta uma universidade, recebam apoios necessários como tutoria e recursos educativos. As leis também incentivam campanhas de conscientização sobre a dislexia nas escolas e na sociedade ajudando a combater estigmas e preconceitos além de proporcionar um ambiente acolhedor. As leis para disléxicos são fundamentais para criar um ambiente que respeite a diversidade e facilite o desenvolvimento integral das pessoas disléxicas brasileiras”.

Fonte: NSC Total

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